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Thiane Ávila

Autor: Thiane Ávila

Criatura

5/9/2019 - Votorantim - SP

Cresci ouvindo de minha avó a lamúria dos semiaflitos. Acostumei-me a sentar os ouvidos na poltrona e ressoar o lírico das histórias intermináveis, sempre muito bem acompanhadas de um chá de ervas colhidas no quintal e de bolo de formigueiro ainda quente do forno. Desde cedo, entendi a moral dos dois ouvidos e de uma só boca. Com filtro e atentos, meus ouvidos sempre foram grandes aliados dos roteiros transformados em livros.

Quando criança, esperava ansiosa que a semana passasse para que, quando chegasse sábado, fosse até a casa de número 40 e cheiro de memória antiga. Minha avó cheirava a talco e creme de erva cidreira, que harmonizava perfeitamente com o aroma do shampoo para cabelos grisalhos que deixava seus brancos ainda mais vivos e brilhosos, fazendo parentesco com tonalidades de cinza chumbo. De saias esparramadas pelos quadris largos, ela acendia o seu cigarro ao lado do cinzeiro de pernas e tragava sua vida ao lado de uma juventude sedenta por adentrar naquele mundo onde quase ninguém mais existia.

Com sorte, eu angariava temperos de saudade que se afogavam em lágrimas disfarçadas e no embargo da voz fumante e grossa que sempre enfeitava a melancolia do passado por trazer consigo o som do tempo. O timbre da voz de minha avó tem o som da corrida das horas, e o movimento da sua cadeira de balanço traduz o sentido que as coisas, quando confusas, precisam tomar para se aprumarem. Sem falar do verde da grama fininha que roçava nos meus pés descalços a sentenciar os próximos passos do que, hoje, ressignifico em obra sobre qualquer coisa.

Nas escritas sobre nada no tempo da varanda, retificando as memórias como as sombras de uma estrela que ilumina de outra esfera. Não há semblante parecido com aquele olhado do fundo do quintal, misturado com os cheiros metonímicos de qualquer coisa que não se traduz. A sinestesia do aroma que ela trazia ao seu silêncio compartilhado, colocando no mesmo saco os assuntos de uma história inventada com aquela deixada de lado pelas tecituras de seu tricô amarrotado.

Brincava com seus rolos como se fossem algodão de lembranças, sabendo da hora marcada para transformarem-se em todas as nuances de uma existência que foi se configurando sem seus pontos. Lembro-me do dia em que ouvi a amarga notícia de um até logo sem data marcada. Longe das manhãs guardadas em sua cozinha com cheiro de chuva recém chegada. Eram os encontros das lembranças que não haviam sido formadas, mas que foram se inaugurando à medida em que o tempo foi passando. 

Tão logo os anos se formaram, sentia como se a amostragem dos sentidos fosse uma fotografia hologramática dos tempos colocados em xeque pela impressão do que, outrora, voltaria a sós. A expressão do conhecido anda conosco pelas estradas que percorremos a cada passo de serenidade pelos becos do que encontramos através do ócio dos pensamentos.

Cada um deles guarda a moldura de qualquer coisa emaranhada com o som de Roberto ligado no vinil antigo atrás da porta. Arranhado pelo tempo dos desarranjos, a voz embargada pelo receio de não se ouvir mais nada além do silêncio já sentenciado pelas paredes. Amalgamados de um carinho bom que só os tempos de lucidez brandas são capazes de trazer.

 

 

THIANE ÁVILA.

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