ColunistasCOLUNISTAS

Thiane Ávila

Autor: Thiane Ávila

Adias para o próximo século a felicidade coletiva

26/10/2018 - Votorantim - SP

Levantas de manhã com o ritmo laboral das coisas sem sentido por entre as prateleiras do café. Ergues a xícara em consonância com os movimentos peristálticos da rotina fadada ao tédio, buscando, nos jornais matinais, os argumentos viciados para as discussões nas calçadas. Te alimentas com o dissabor das coisas rápidas e frias, aceitando as falas fáceis que te poupam de pensar. Consomes as soluções rápidas para os problemas da nação, regurgitando as narrativas construídas para ordenar uma geração que se rebela às ordens de cima.

Durante as primeiras horas da manhã, sentes, roboticamente, calor e frio pela mudança dos ambientes, mas já te acostumaste a permanecer sentado o dia inteiro servindo a uma máquina que desconheces e defendes. Nunca abriste os livros de história, mas palestras repetidamente as normas que te alcançaram pelas manchetes de jornais. Preconizas a virtude com o sangue frio dos heróis que sobem ao páreo pela quantidade de sangue que acumulam entre os dedos, comprovando o fracasso da educação que defendes em prol da anistia da tua consciência.

Aceitas vergonhosamente a submissão aos desmandos cadavéricos de contemporâneos do século passado, enaltecendo os guarda-chuvas que se abrem acima de cabeças escolhidas. A chuva de bala que recai sobre os pobres e as putas não te comove, sendo capaz de gerar o engasgo por não conseguir engolir o fato dos teus próprios privilégios. Cresceste incapaz de inferir as diferenças entre os iguais, acusando o troféu da meritocracia como desmérito dos vagabundos. Apedrejas os corpos à mostra, mas consomes sem consentimento a nudez de corpos que não estão à venda. Cultuas um deus criador de homens de bem, ao mesmo tempo em que ages como os torturadores que, à época, o crucificaram por defender os mitológicos ideais comunistas, que tanto te assustam.

Não és capaz de decifrar os enigmas de um jogo que te coloca como peça, mas crê ardentemente estar ciente sobre suas regras. Te curvas, toda a manhã, à supremacia dos escolhidos, cuspindo a indigestão provocada pela tua intolerância quando encaras os olhos das gays que julgas serem comprovadamente amaldiçoadas. Ao final do dia, anseias melancolicamente o lugar já afundado na ponta do sofá, quando podes, finalmente, tomar a tua cerveja e assistir ao culto da mídia massiva, que, mais uma vez, renova teus votos em sujeição ao que consideras como o ideal de mudança.

Dialogas com corpos mortos, comprovando tua tese a partir das grandezas do espírito e da mítica sabedoria secular que, desde sempre, binariza os segmentos em legítimo e ilegítimo. Ao deitar tua cabeça no travesseiro, sonhas com a regularidade de uma vida que reproduza a falta de significado que acordas contigo, acumulando ainda mais ódio por ver que, nos sorrisos que tanto rejeitas, reside uma felicidade que nunca tiveste. Lembras, de vez em quando, da adolescência anárquica em escola pública, que te remetia a uma esperança há muito tempo enterrada sobre tempos mais amenos de liberdades garantidas.

Hoje, acreditas que a literatura foi o grande estopim para o estrago das mentes que se opõem a ti. Concordas com a agressividade dos processos de mudança, enquanto garantes que respeita tua mulher em casa, ainda que não goste da ideia de vê-la trabalhando e fazendo as suas coisas. Já confessaste, certa vez, que te sentias menor quando tinhas que responder a uma mulher em teu serviço. Nunca admitiste a possibilidade de um filho ou filha homossexual, atribuindo à boa educação a ausência de risco de tal evento dentro de tua casa.

Depois de tomar tua cerveja, arrotas a lição que o jornal da noite te passou de forma didática e sem críticas. Nunca paraste para pensar se poderia, quem sabe, haver uma versão diferente dos fatos que te narram em linguagem quase infantil. Mas sempre te achas suficientemente inteligente por conseguir manter-se atento durante alguns minutos em frente à televisão, ouvindo, sem questionamento, tudo o que te ensinam que deves aprender. Quando deitas, por fim, apagas, em sono profundo, a devassidão das destruições que tuas defesas são capazes de provocar, entendendo que, por mais que sempre haja vítimas inocentes, ainda assim é melhor que essas morram em prol de um bem maior - mesmo que tu ainda não saibas responder a respeito do que esse bem se trata.

 

THIANE ÁVILA.

 

Compartilhe no Whatsapp