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Thiane Ávila

Autor: Thiane Ávila

A escrita dela é uma caixa com fundo falso

10/8/2018 - Votorantim - SP

Sempre me vi posta de frente com a adrenalina das coisas corriqueiras. Aquela coisa de estar empolgada por acordar e pensar que terá panquecas no almoço. Uma felicidade por lembrar da cerveja marcada para o final do dia e, entre uma coisa e outra, o prazer de sair da dieta com um doce fora de hora. Elis, por outro lado, sempre teve um modo muito seu de alegrar-se com esses detalhes. Ao contrário de mim, que acordo saltitando, ela reverbera o sorriso em um olhar fixo e terno em minha direção. Desestabilizo na primeira hora da manhã.

O amanhecer, para ela, é um livro cheio de páginas em branco. Sua caneta é o olhar, preto como a mais profunda escuridão da noite. Com um sorriso de orelha a orelha, é capaz de esconder qualquer tipo de segredo de quem quer que seja. A escrita dela é uma caixa com fundo falso. Possui um jeito icônico de conduzir as horas, torcendo para o despreparo do tempo.

- Se eu pudesse fazer um único desejo, pediria que o tempo se perdesse vez que outra. Que esquecesse de contar os minutos e, distraído, acrescentasse alguns instantes às pequenas eternidades dos dias.

Sempre rondando em torno do tempo. Parece ser a sina de Elis essa obsessão por refletir sobre a relatividade das coisas. Antes de conhecê-la, eu temia a morte. Mais que isso, tinha pena de morrer ou então temia o modo como a morte viria. Sempre fui de antecipar. Prognosticar. Amaldiçoar os pensamentos. Como fuga de mim mesma, costumava empurrar as frustrações para uma ansiedade alocada no futuro, negligenciando o presente de um modo tão brutal que, não poucas as vezes, perdia de viver a simplicidade dos minutos ociosos. E então os desencontros se distraíram e, no tropeço de uma noite qualquer, encontrei com Elis.

Mas conhecer alguém como ela não é tão simples assim. A alça que segura seu mundo é um tensionamento de tanta coisa intangível que nem todo mundo consegue acompanhar - o  que é plausível, pois a vida certamente não aplaca seu apetite e sua fome. Elis encontrou, na escrita, o espaço ideal para registrar o que os outros não poucas vezes apagam quando ela fala. Uma maneira louvável de se convencer sobre o valor de sua singularidade e, sobretudo, do descompromisso que se deve ter com os suspiros censuradores e as exigências hipócritas de uma audiência que pouco se interessa em entender as entrelinhas.

- A morte não me assusta. O que me dá calafrios, na verdade, é não viver.

E assim ela encerrou uma palestra particular que eu dava, certa noite, a respeito do receio sobre a morte. Essas palavras ecoarão para sempre em minha mente, pois essa é a tendência secular dos comportamentos e das importâncias. O olhar afrontoso para o desconhecido - aquele que não se sabe se chegará um dia - e perdido para os sinais piscantes e escandalosos dos momentos tocáveis. Palatáveis. Aqueles que são, realmente, modificáveis. A primeira vez que ela me disse essa frase, fazia mais ou menos um ano que havíamos nos conhecido. Desde então, não a perdi de vista, pois comecei a sentir medo de não viver o seu corpo, o seu cheiro, o seu toque. Nenhuma de nós tinha pretensão de compromisso, mas não podíamos, de forma alguma, perder a chance de desfrutar da química e das vontades que, desde sempre, circundaram nossos encontros.

Honestamente, pensei que nunca fôssemos ficar juntas como estamos hoje - e essa foi a melhor maneira de conhecê-la. Pessoas como Elis não foram feitas para morar em expectativas, mas para serem o efeito capaz de desestimular a complacência frente às ocasiões. Ela é o tipo de coisa sobre a qual não se tem escolha justamente pela liberdade exagerada de escolher.

 

THIANE ÁVILA.

 

 

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