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Thiane Ávila

Autor: Thiane Ávila

No dia que me tornei minha

4/5/2017 - Votorantim - SP

No dia que me tornei minha, fumei meu cigarro na janela, orquestrada pelo silêncio que, há tanto, pouco ou nada me dizia. Nos vazios onde depositei expectativas sobre alguém, deixei transbordar os nadas que também justificam a existência, fazendo do eu uma consonância entre sentir e despertar. Como que mais consciente da valia das despretensões, regurgitei lembranças, posicionando as dores em latências acolchoadas, de onde tiro o véu para cobrir a cabeça já tão tumultuada pela rotina e pelas contusões do espírito.

No dia que me tornei minha, bebi algumas doses do meu whisky predileto, ao som das brasilidades que irrompem meu cenário, envergando os olhos às escritas quase funerárias de uma existência feliz. Sobre os amores já desfalecidos, coloquei rosas que, também mortas, analogam a beleza das coisas sem vida. O sincronismo, por vezes esdrúxulo, dos amores que, quando não matam, morrem. E, quando não morrem, matam. Alguns, é verdade, jamais morrerão - ainda que permaneçam vivos pelas cicatrizes expostas e já impossíveis de esconder.

No dia que me tornei minha, andei pela casa nua, admirando a tela que o meu corpo personifica com as histórias que conto a cada vez que me risco. As atmosferas etéreas e lúcidas de um ambiente incipiente e inóculo de obstáculos, resplandecendo, através do espelho, a loucura paradoxalmente lúcida de não viver mais que o momento que se exprime. Compondo e reluzindo, na noite, as destrezas manuais que as palavras encerram em minhas sensações, atuando como parasitas vitais para minha própria corrupção salutar. Minha dissonância entre o verbo e a prática, como se as experiências fossem antes escritas para depois serem vividas. Se pudesse desenhar, faria minha vida como que num passo ritmado e anacrônico de linhas transversas e submersas pela esgrima dos sonetos mais melancólicos e românticos de não ter, um dia sequer, paz.

No dia que me tornei minha, libertei-me do cabelo que não queria, emancipei as mãos como quem atordoa a própria singeleza e corroí sobre os meus destroços a gana de não continuar sofrendo. Sofrer, pois, tornou-se a semiologia das partituras entrecruzadas dos sentidos, fazendo crer que, embora necessitemos antes parecer, o ser é, definitivamente, a insanidade promíscua de quem não permite se conter.

 

THIANE ÁVILA.

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