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Thiane Ávila

Autor: Thiane Ávila

Nós aceitamos o amor que acreditamos merecer

16/10/2016 - Votorantim - SP

Numa psicanálise vivenciada em cada milésimo de lucidez, transparecemos a discrepância entre o que compõe e o que é composto. Como numa alforria desgarrada de qualquer pretexto, emancipamos na saudade a consternação de não ter vivido. A cada fim, uma mescla de luto com pressa de voltar ou sair de vez. Sem meio termo ou ancoragens contextuais, subvertemos a regra da liberdade pela segurança de conhecer os próximos passos. O trajeto retilíneo de quem não se atreve a discorrer diferente.

No divã, os pensamentos transladam a agonia da ação engaiolada. Amamos os detalhes com a imensidão de uma vida inteira. Perene, prestes a terminar. Por impaciência das horas, inauguramos as vantagens inventadas em falas que imploram. Como se dobrássemos os joelhos à mínima ameaça de carinho, perdemos a essência do que é, de fato, apaixonar-se por alguém – e não pela necessidade de ficar. Todo o sentimento extravasado é um reflexo do que nos compõe, tornando pública a irrelevância das desculpas, constrangindo, pelos contornos, a sede quase insana de uma realidade inerte, plena na vontade e reprimida pela falta de fôlego.

 A cada nova expectativa, ilustro, em pensamento, uma viagem roteirizada sem o conhecimento do destino. É como se escolhêssemos os lugares sem ter decidido para onde ir. Como se finalizássemos uma vida sem ao menos ter começado a vive-la. Antecipando as sensações, imergimos na ansiedade pela incerteza. Os projetos, por assim dizer, resvalam nas possibilidades de se concretizar, mas adquirem importância maior do que o próprio percurso. Sem aproveitar o caminho, caímos em desvalia pelas derrotas sobre nossas próprias misérias. Ao final, amamos do jeito que acreditamos ser necessário amar, desmerecendo as partes como quem ignora tudo o que, lá na frente, dará, de fato, sentido ao que se tornou real.

Em tempos de fluidez e desinteresse, confundimos as passagens e os desencontros. A prioridade retórica de um silêncio que, ao contrário de outros, nada diz. Ao invés, pois, de procurarmos significar as palavras não ditas em meio a sentimentos, elucidamos o silêncio vazio do que nunca significou nada. Ressignificar para fluir em despreparo e vida talvez pareça o maior desafio das vidas sem recheio de uma geração que veio apenas para se desinteressar e competir o amor pela própria solidão que angustia.

Nesses dias em que a chuva desce, como que trazendo os recados que, potencialmente, podemos imprimir à água que leva, transfiguro a retina ao latente. Às vezes, não percebemos alguém à espreita. A lista repleta de contatos é, tantas vezes, o que enche de desimportância quem decide ficar. Ao final, sempre aceitamos o amor que acreditamos merecer.

 

THIANE ÁVILA.

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