ColunistasCOLUNISTAS

Thiane Ávila

Autor: Thiane Ávila

Essa carta não será nunca endereçada

10/10/2016 - Votorantim - SP

A fugacidade da vida passou por mim duas vezes e ao mesmo tempo. Justamente a provar o encanto do fim. A audácia de ser esplêndido quando está prestes a terminar - ou então na própria morte. A flor atirada no chão, exalando ainda o perfume das primaveras que viveu, no seu vermelho vivo, desbotou minha consternação de não permanecer. Breve como qualquer paisagem pela janela de um ônibus lotado de coisas vazias, gritou aos meus ouvidos o semblante indiscriminado da sepultura à semelhança de um nascimento. 

Deitada no chão molhado, a flor, automaticamente ao cruzar meu caminho, forçou-me a decisão de permanecer com a última imagem de vida que ainda respirava nas pétalas ou de levar comigo simplesmente pelo comum egoísmo de querer que a beleza se eternize nas mãos. A política reflexiva que faz delegar importâncias gesticulou em forma de cumprimento naqueles instantes curtos de pensamento sobre a sutileza da morte. O senhor, teimoso, passou vomitando um bom dia carinhoso, seguido pela velha mulher que corria querendo protegê-lo da chuva. Me deu bom dia e reclamou da teimosia do marido. Eram felizes no seu final. 

O cuidado da existência que se liquida talvez seja o sinal necessário para deixar a flor à prova de sua própria liberdade de findar. O casal passou com suas vidas centenárias a despedir-se. A felicidade efêmera da permanência em nada se compara com a permanência efêmera de uma vida feliz. Sou feliz por ter partilhado a felicidade das duas. Sou vida por ser efêmera e buscar ser feliz. 

Essa carta não será nunca endereçada. As significações estarão aparentes apenas nessa conexão que só a gente conhece. A luz branca vista acima da cabeça. A liquidez dos dias me fez notar que me apaixonei pelas conversas e pela ligação inesperada. Mais que pelo tempo que durou, mas pela preocupação e pela insistência. O recado que a chuva trouxe fez referências às pontes que se iniciam e não se arriscam até o final. Eu nunca estive inteira nisso e agora me despedaço em partes que não doei. Que não compartilhei.

Minha rotina de tempo cronometrado é o psicotrópico para a resiliência que se busca suprimir. O tempo que não é de se pensar é o que mais atordoa a mente, borbulhando em minutos preciosos de quereres interrompidos. Não se trata mais da esperança de algo voltar a ser como era, apenas de uma vontade inesperada de dizer que amo a potência que nós duas juntas éramos. Admiro, agora, como fiz com a flor, o último sorriso guardado na intimidade. Hoje amo a lembrança e a cicatriz bonita que isso tudo deixou em mim. É só. 

 

THIANE ÁVILA.

Compartilhe no Whatsapp