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Thiane Ávila

Autor: Thiane Ávila

Areia movediça em chão de concreto

30/8/2016 - Votorantim - SP

Hoje, no momento da eloquência silenciosa e parafraseada pela insegurança de exprimir, sou a mansidão de um dia que guarnece pela sabedoria do sol que lambe e seca. Sou, num pretexto desigual de querer e não ir, a vontade dela de permanecer nos braços de quem ama por mais algumas vidas, nem que elas sejam contadas em breves e eternos segundos de morada. Sou o desajeitado motivo inventado, pelo empréstimo de qualquer verso rimado com nada, que ela deixou no rodapé do meu livro preferido. Apenas para afirmar um sim que nunca foi dito, desses que só um quê de astrologia combinado a um nada de sentido podem fazer entender.

Sou a cerveja do copo que ela deixou esquentar por descuido, mas que não deixou de tomar. Um estrago ensaiado na sua roupa preferida, ainda que apaziguado pela compreensão de quem sempre se encanta. Eu sou as histórias repetidas que ela conta na beira da janela, tentando desviar a atenção dos problemas de mulher que carrega no peito de menina. Toda a cobrança por ser quem não se é, aliviada pelos instantes de loucura insana dos pensamentos libertados num ascendente de água. Sou o café morno e sem açúcar que ela toma ao acordar, envelhecido um ou dois dias pela preguiça de passar de novo. O caminho, pois, que ela caminha sem entender o porquê, mas que não cessa nas buscas pelos passados que alguma coisa expliquem. Eu sou um pouco da infância perdida em exigências binárias e limitadas de vida e morte, recitadas pelo livro de poesias mal encaixadas e sem métrica que ela escreve toda a noite antes de dormir.

Sou o cigarro tragado pelo desespero da rotina, que ela descreve milimetricamente através daqueles olhos pequenos de carência e independência. Um pouco, também, da marginalidade de seus insultos grosseiros e impróprios, que se negociam apenas com o entrelaçar de dedos suados e amalgamados de vontades óbvias escondidas. Costumo ser o nostálgico final de domingo à beira do Guaíba, retratado pelas retinas de uma fala quase mais clara que o próprio pôr-do-sol que se vê logo à frente. Sou, por vezes, a fala dela em minimalismos irritantes, extraviados de um ou dois versos de Barros em sua consonância dos avessos e neologismos. Sou, por assim dizer, a hermenêutica dos olhos dessa menina de signo de água, presa aos seus sonhos implantados no céu das expectativas. O sonho que alimento com os meus olhos de mulher que aprecia cada limite do que ela me permite ser em sua própria existência.

Eu sou a escrita desarrumada em frente ao mar do litoral Norte, a demorar na observação teimosa das qualidades que encerram cada detalhe do rosto dela. Essa eterna intempestividade dos olhos mansos e comedores de alma que ela resguarda para o meu encarar, provocando, graças ao mapa confuso, minha loucura por não largar o desejo de observá-la por mais algumas existências. Sou, por fim e por início, essa quebra de nuances pela extravagância do silêncio que se limita a pertencer tão somente ao cheiro que sai de seus cabelos longos. Ora cor de terra escura, ora cor de alma.

THIANE ÁVILA.

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