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Thiane Ávila

Autor: Thiane Ávila

O país dos cegos

2/9/2015 - Votorantim - SP

Em partes, não querer ver para mascarar. Não ver para melhor enxergar. Ainda, pois, enxergar o que não se vê e nunca se verá. Todas as anomalias incrustadas numa retina programada, numa caricatura enraizada e fixada no cristalino das tradições.

Um espelho jamais guardará as coisas refletidas. O ciclismo das paisagens é o que mantém fixa a mania de mudar. O desejo pelo não pertencimento e pela certeza de ser inconstante e nômade em um mundo onde todos querem criar raízes. Em uma realidade em que viver passa primeiro por servir a um sistema fútil.

No fundo, eu só preciso de alguém que não solte a minha mão. Alguém que saiba a hora de apertá-la e a hora de ficar apenas de vigia, deixando afastar um pouco. Toda a presença que cerca, para permanecer, deve significar. A propriedade é uma cela de dois braços que se confunde com segurança. Estar seguro é assegurar-se da permanência, mesmo que longe. A família que se constrói ao longo da vida, e não o contrário.

Qualquer tentativa de manutenção das boas condutas desrespeita a melhor delas que é a de ser quem, de fato, se quer ser. Cobrar por estabilidade é a prova do desmoronamento, da sensibilidade e dos pilares de areia fina. A teoria é que o mundo aparente é uma forma disfarçada de uma realidade mais profunda, aquela que não tocamos, mas sentimos.

Não ver as futilidades do ego é teimar em não dissociar a dinâmica do conveniente aos olhos alheios da conveniência que se importa apenas com o bem-estar. Estou em constante provação dos olhos que me veem, sempre a procurar a velha menina que construiu tão concretamente uma personalidade intocável. Valores intangíveis. Cabelos sedosos e nunca corrompíveis às podas da própria mudança de estação. Do descobrir-se outro.

Por vezes, a miséria da autenticidade dos que se dizem transbordantes de certezas é a própria ausência de verdades. Acreditar no que melhor se encaixa para pertencer a um grupo. Não pensar, pois, assumindo o melhor lugar no ranking das hierarquias sociais. No ranking da notoriedade e dignidade de reconhecimento e mérito.

Somos mal agradecidos por transgredir a forma convencional de amar. Somos cúmplices do lado negro por demonstrar a outra face de um mesmo rosto, aquele que só aparece de um lado na televisão. Aquele que experimenta apenas os elogios da ala mais conservadora: os patifes que usurpam as regras, criando-as para si.

Falta entender, pois, que não temos uma essência. Somos dinâmica e jogo de azar e sorte. A loteria involuntária da criação. O arremesso cego de qualquer coisa a qualquer lugar. Não há documento que prescreva a receita do que é estar certo interiormente.

Fui julgada e apedrejada em meus cortejos ao mundo. Fui ameaçada de vida em um sistema servil por acharem que poderia me adequar facilmente. Quase me levaram. Quase me convenceram. Optei, por fim, pelo agora que já é passado. Pelo pó que é o tempo que nos carrega, a significar tão somente os bons ares que deixo a quem me merece e a quem mereço.

Deixei de ser quem era a cada espaço em branco desse texto. A cada nova caligrafia que inventei, apoiada em nada, presumindo tampouco alguma coisa. Na efemeridade da construção do meu eu, prognostico apenas que não devo recomendações a outrem. Que aquele que cobra agradecimento é, pois, o que devia ter feito absolutamente nada. Fazer para ser visto é senão uma forma medíocre de morrer para estar vivo.

 

THIANE ÁVILA.

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